O projeto “Memória das cantigas do Jarê” nasceu da vontade dos Filhos de Santo do Palácio de Ogum e Caboclo Sete Serra em ter a memória do Jarê preservada e difundida. Com este desejo fomos juntando as peças da nossa história para compor esta linda experiência para vocês. Reunimos fotografias que datam desde os anos 1970 e gravamos as cantigas que entoamos nas festas, valorizando neste processo as lideranças do Jarê que participaram do projeto.
O projeto tem apoio financeiro do Estado da Bahia através da Secretaria de Cultura e da Fundação Pedro Calmon (Programa Aldir Blanc Bahia) via Lei Aldir Blanc, direcionada pela Secretaria Especial da Cultura do Ministério do Turismo, Governo Federal. Foi aprovado na categoria 'Arquivos' que premiou iniciativas que contribuem “para a preservação, o acesso e a difusão de registros históricos e culturais que integram o patrimônio arquivístico da Bahia”. Tendo a noção de arquivo como um norte, objetivamos aqui criar um grande arquivo digital dessas cantigas que são preservadas e transmitidas pela oralidade. Foram gravadas nove lideranças religiosas da cidade de Lençóis entoando suas cantigas, totalizando 445 versões em arquivos de áudio. Estes áudios não correspondem exatamente às cantigas transcritas, por vezes as lideranças escolheram interpretar as mesmas saudações, gerando assim diferentes versões de um canto. Mantivemos essa diversidade no site, assim você encontrará cantigas que apresentam duas ou mais faixas de áudio e poderá escolher qual liderança ouvir. Como no caso desta cantiga para Santa Bárbara:
É ouro Santa Bárbara, é ouro É ouro, eu cheguei de mina É ouro Santa Bárbara, é ouro Eu vivo na macumba Pra cumprir a minha sina
Buscamos reunir informações e organizar uma biografia sobre o Pai de Santo e Curador, Pedro de Laura, o maior curador de que se tem conhecimento na história recente de Lençóis e um dos grandes mestres do Jarê da Chapada Diamantina. A importância do Jarê de Lençóis pode ser auferida, entre outros fatores, pelo reconhecimento em todo território da Chapada Diamantina do poder de cura de Pedro de Laura. Era comum que pessoas de toda a região e de outros cantos do Brasil viajassem até Lençóis em busca de tratamentos com o curador. Pedro foi o pai de santo da maioria das lideranças entrevistadas nesse processo, pelas quais é lembrado com muito carinho e admiração.
Com o objetivo de contextualizar o leitor, o site apresenta uma história do Jarê bem como a biografia de todas as lideranças que participaram diretamente do projeto: Cosminho, Terreiro de Ogum Guerreiro; Damaré, Terreiro Peji Pedra Branca de Oxossi; Damiana, líder religiosa de casa de jarê; Daso, Terreiro Pai Gil de Ogum; Dil, Terreiro Boca da Mata de Senhor Ogum; Dinha, Terreiro de Ogum das Águas Claras; Mussum, Terreiro Filhos de Deus e Oxalá; Pepê, Terreiro Castelo de Ogum; Valdelice, Terreiro Águas de Iemanjá.
As fotografias digitalizadas são do acervo pessoal de Sandoval Amorim, filho de Pedro de Laura, as mais antigas datando dos anos setenta. Alguns filhos de santo de Pedro de Laura afirmaram que tinham fotografias dele, mas grande parte se perdeu ou foi danificada pelo tempo. Assim, decidimos publicar na aba “Álbum de Fotos” aquelas mais antigas que tivemos acesso. Na legenda incluímos as informações com nomes e datas quando foi possível identificar. Durante a pesquisa, solicitamos acesso às fotografias produzidas sobre Jarê por fotógrafos, documentaristas e pesquisadores, as quais foram gentilmente cedidas para o projeto. Estas fotografias não estão no site, mas compõem um acervo digital hospedado na nuvem que pode ser acessado por todas as lideranças religiosas.
O trabalho de organização das cantigas foi feito originalmente por Gabriel Banaggia em sua tese de doutorado “As forças do jarê: movimento e criatividade na religião de matriz africana da Chapada Diamantina”. Durante a pesquisa para este projeto nos deparamos com mais cantigas ainda não transcritas que adicionamos à coletânea, neste site você encontra um total de 457 cantigas em texto. Elas foram ditadas pelos filhos-de-santo em encontros que renderam uma coletânea de mais de trezentas cantigas. Tanto o livro “As forças do Jarê”, quanto a cartilha de cantigas que Gabriel disponibilizou para seus interlocutores de Lençóis foram fundamentais na execução desta pesquisa. Não constam no site as cantigas para Exu e as cantigas de trabalho presentes na cartilha, pois estas não devem ser divulgadas fora dos rituais. Pelo mesmo motivo, não registramos o Dorosã, reza específica do Palácio de Ogum.
O projeto teve como objetivo divulgar as cantigas não somente em formato escrito, mas em registros sonoros, assim preservando as vozes, tonalidades e ritmo conferido por cada uma das lideranças. Durante as gravações registramos algumas cantigas que não tinham sido catalogadas e outras com algumas alterações. Por exemplo, onde o texto indicava “minha mãe”, cantaram “mamãe”, ou quando a cantiga chamava por “Iansã” cantaram-na para “Oxóssi”. Essas variações nas cantigas ocorrem pois estas são constantemente alteradas e recriadas pelas entidades do Jarê. Por isso, podemos dizer que essa coletânea nunca estará completa, pois novos cantos estão sendo apresentados. Também não estará “correta” aos olhos de todas as lideranças, pois suas formas variam entre as casas de jarê. No texto do site, mantivemos as transcrições originais de Gabriel, adicionando as cantigas novas que nos foram apresentadas. As gravações muitas vezes diferem do texto escrito, assim optamos por mostrar as diferentes versões das cantiga.
A arte do site foi criada por Fernanda Cogo, designer e mãe pequena de terreiro de umbanda, artista que desenvolve trabalhos de colagem que representam os Orixás a partir de seus elementos. A composição criada para o projeto mescla os símbolos tradicionais da matriz afro com imagens dos pejis de Lençóis — nome que levam os altares das casas de jarê. Optamos por criar uma experiência que reflete a lógica do jarê e suas festas, que tem como principais referências as entidades e a natureza. Esta escolha se dá por não querer organizar o jarê por categorias do mundo escrito, em códigos e procedimentos que lhe são externos. Portanto, mobilizar as categorias do Jarê significa preservar sua potência e seu significado para os praticantes neste novo formato digital.
A sequência em que as cantigas se apresentam reflete como são feitas nas cerimônias do Jarê, ressaltando que há variações, dependendo do “guia de frente da casa” e para quem é a festa em questão. Então começamos com Ogum, enquanto ainda é dia. Em seguida, vamos adentrando para saudar a Aldeia d’Água (Marinheiro, Mãe d’Água, Sereia, Janaína). Na sequência são saudadas as entidades Santa Bárbara e Iansã, Xangô e São Sebastião. A linhagem dos caboclos é a que apresenta o maior número de entidades. Nesse projeto escolhemos primeiro saudar o senhor Sete Serra por ser o caboclo do Curador Pedro de Laura, seguido pelas outras aldeias das matas: Sultão das Matas, Gentio, Eru, Índio, Turco Leão, Jurema, Oxóssi, Tomba Morro, Jericó, Mineiro e Preto Velho. A linhagem dos Nagôs é a que sucede os caboclos chamando os mais velhos para sambar: Nagô, Obaluaê, Oxalá, Nanã. Boiadeiro e Odé, e finalizando com Cosme e Damião quando o dia já amanhece.
A Associação dos Filhos de Santo do Palácio de Ogum e Caboclo Sete Serra realizou este trabalho no intuito de valorizar e preservar a nossa memória e a do saudoso curador Pedro de Laura. Também o dedicamos à memória de Pai Gil, que infelizmente veio a falecer antes da conclusão do site. Desde o convite para participar do projeto, Pai Gil colaborou com muita alegria e entusiasmo por acreditar na importância de se preservar a memória da religião a que dedicou sua vida.
Este site se destina aos filhos de santo das casas de Jarê, esperamos que gostem do trabalho que foi feito com muito carinho. Caso queiram, podem baixar o conteúdo do site na aba “Livro Digital”. Também dedicamos este trabalho aos filhos de outras casas de matriz africana que queiram conhecer um pouco mais sobre a nossa cultura. Esperamos ainda que a disseminação do conhecimento sobre nossas práticas ancestrais ajude a combater a intolerância religiosa para com as religiões de matriz africana.