A história do jarê na Chapada Diamantina se confunde com a história do desenvolvimento do garimpo na região. Mais amplamente, ela está conectada com a história da diáspora africana resultante da imigração forçada milhões de cativos para trabalharem em terras brasileiras. O Brasil foi o principal destino do tráfico de escravizados da América, tendo recebido cerca de 4,8 milhões de cativos africanos entre 1550 e 18501. Como sabemos, até a abolição em 1888, os escravizados foram a principal força de trabalho no país, sendo fundamentais nos trabalhos rurais e nas áreas urbanas, bem como na mineração. Entre os séculos XVI e XVIII a maioria dos africanos vinha da região centro-ocidental da África, designada na literatura como Congo-Angola. De um modo geral, os habitantes da África Centro-Ocidental (que se estende do Camarões até Angola) eram falantes de línguas bantu, região que, segundo a literatura especializada, constitui um tronco cultural uno que partilha cosmovisões e valores sociais2. Salvador e Rio de Janeiro foram as principais praças de entrada dos cativos oriundos da África central, sendo levados desses locais para realizar trabalhos forçados em diversas partes do território.
Já os cativos da África ocidental, uma região que se estende do Senegal ao Gabão, constituíram cerca de 25% dos escravizados trazidos ao Brasil, algo próximo de 1,2 milhões de pessoas3. Calcula-se que a maioria dos africanos ocidentais foi traficada para cá no século XIX, vindos de uma região que os traficantes portugueses chamavam de Costa da Mina, que fica entre Gana e Lagos, na Nigéria. Entre o final do século XVIII e início do XIX, traficantes baianos mantinham estreitas relações comerciais com negociantes de escravos da Costa da Mina, fazendo com que a praça de Salvador se tornasse a principal porta de entrada de africanos e africanas dessa região4. Isso explica o fato de que em torno de 75% dos africanos ocidentais tenham se concentrado na Bahia5, trabalhando tanto em atividades agrícolas e pecuárias como nos centros urbanos. Dessa área foram trazidos para o Brasil majoritariamente povos falantes de línguas dos troncos gbe e yorubá, que na Bahia ficaram respectivamente chamados de jejes e nagôs.
Com a descoberta de diamantes na serra do Sincorá, cujos relatos mais remotos remontam aos registros de viagem do zoólogo Johann Baptist von Spix e do botânico Carl Friedrich Martius de 18206, a área que viria a ser conhecida como Lavras Diamantinas se torna alvo de grande interesse nacional. A existência de jazidas faz com que o foco dos interesses econômicos se desloque da costa da província da Bahia para o seu interior. A notícia sobre os diamantes se espalha, promovendo um grande deslocamento de pessoas de diversas partes do país para a região montanhosa localizada no centro geográfico do estado. As principais rotas de migração eram pelo sul, de pessoas vindas das Minas Gerais, e pelo litoral baiano. Há registros de povoamentos formados por garimpeiros, livres e escravizados, já nas primeiras décadas da exploração diamantífera.
Em meados do século XIX, o adensamento populacional leva o governo provincial da Bahia a elevar alguns deles a vilas, como é caso daquelas que formas a região da Lavras Diamantinas: Lençóis, Mucugê, Andaraí e Palmeiras. Tal ocupação, no entanto, ocorreu através da lógica da conquista colonial que promoveu o extermínio de indígenas por todo o continente americano. Os povos originários que ocupavam o sertão baiano pertenciam às nações indígenas dos grupos linguísticos Tupi, Cariri e Gês, sendo encontradas na Chapada Diamantina os grupos étnicos Aracapás, Mongóis, Galaches, Ocrens, Oris, Cariacãs, Paiaiás e Maracás7. Apesar de haver pouquíssimos registros sobre os índios do interior da Bahia, o mais provável é que seu quase desaparecimento da região esteja ligado à sua morte e expulsão de suas terras pela exploração do garimpo de diamantes.
O desenvolvimento do garimpo nas Lavras Diamantinas envolveu, de um lado, os que lucravam com a exploração, os grandes proprietários de terra e comerciantes de diamantes, e de outro os explorados, Página Inicialns pobres livres e africanos escravizados. Devido à facilidade de acesso, o mais provável é que os africanos trazidos para trabalhar nos garimpos fossem da África Ocidental, das nações Jeje e Nagô. No entanto, devido a sua dispersão pelo território nacional, muitos deles possivelmente eram oriundos da região Congo-Angola, na África Central. Com eles vieram suas formas de vida, sociabilidade e cosmovisões. Foi no bojo desse processo que teve origem o jarê da Chapada Diamantina.
Assim como as demais religiões de matriz africana no Brasil, o jarê surge historicamente por meio de complexas interações culturais entre cultos afro com o catolicismo popular de origem ibérica, o espiritismo e culturas indígenas8. Em uma sociedade escravocrata de constante repressão a população de origem africana, seja liberta ou escravizada, a religião se torna um espaço de união e resistência. Africanos vindos de diferentes regiões da África, assim como seus descendentes, que chegaram à Chapada Diamantina durante o período da mineração, reuniam-se buscando recriar as experiências sociais e comunitárias das quais foram retirados. O terreiro era um dos espaços onde africanos, mesmo que de culturas distintas, se organizavam e criavam formas de convívio, laços de parentesco e relações de irmandade interligadas pela religião. As crenças, cultos e costumes trazidos por essa população africana que chegou à Chapada Diamantina em meados do século XIX foram se adaptando à realidade local.
Conta o antropólogo Gabriel Banaggia, com base em relatos orais transmitidos por pessoas antigas da cidade de Lençóis, que senhoras nagôs naturais da região do golfo do Benin, na costa ocidental da África, exerciam papel de liderança nas comunidades negras das cidades de Lençóis e Andaraí. Essas senhoras teriam vindo de Cachoeira (cidade ainda hoje referência das religiões de matriz afro no Brasil) e navegado através do rio Paraguaçu até aportar em Lençóis trazendo seus ritos, celebrações e objetos de uso ritual que são considerados centrais no jarê. Chegado na Chapada Diamantina, o candomblé jeje-nagô praticado por essas senhoras se funde aos elementos pré-existentes de fundamento congo-angola. Foi a transformação ocorrida com esse candomblé de nagô, como é conhecido, na região das Lavras que veio a dar origem ao jarê9.
O relato sobre a história das senhoras nagôs carrega algo que revela uma característica marcante no jarê: o sincretismo que está na sua própria gênese. As religiões africanas cultuadas pelos cativos e libertos que chegaram na Chapada Diamantina, e no Brasil de um modo geral, tem em sua essência uma abertura que favorece a incorporação de elementos de outras fés, o que explica a rica diversidade de religiões encontradas na África10. Assim, apesar das adversidades vividas por africanos e seus descendentes, o Brasil representou um solo fértil para incorporação de crenças que deram origem às religiões afro-brasileiras, a exemplo do candomblé, da umbanda, do tambor de mina e tantas outras.
O jarê é comumente entendido como uma variante do candomblé, mas diferente de sua versão litorânea mais “ortodoxa”, ele seria mais aberto à assimilação de influências externas ao cultos Bantu-Yorubá que estão na sua raiz11. O antropólogo Ronaldo Senna define o jarê como um candomblé de caboclo, isto é, um culto resultante do encontro de entidades yorubás com entidades nativas da região da Chapada, que seriam espíritos descendentes de índios12.
Esse cruzamento entre divindades africanas, ameríndias e do catolicismo talvez se explique pela natureza dos cultos e culturas bantu-nagô que se encontram no Brasil. A interação que escravos e libertos nagôs estabeleciam com culturas locais e outras nações africanas ajudaram a criar novas identidades e sociabilidades que resultaram na organização de formas de associação em torno da religiosidade13. Esses laços religiosos fortaleciam os vínculos entre africanos, como ocorreu com o jarê. Já os bantu carregavam consigo o culto aos espíritos tutelares da terra, que são entidades que auxiliam os grupos que vivem em uma determinada área. Ao entrarem em um novo território a primeira preocupação dos bantu era saber quem são os donos da terra (seus espíritos tutelares) e como entrar em contato com eles. Com a vinda forçada para terras brasileiras, africanos congo-angolanos realizavam rituais para entrar em contato com espíritos indígenas, “caboclos”, em seus rituais: as entidades donas da terra14.
Conforme consta pelos relatos orais, as festas de candomblé organizadas pelas senhoras nagôs onde ocorriam danças e toques dedicados a rituais de incorporação das entidades africanas, eram visitadas por espíritos indígenas. Esses espíritos dos primeiros ancestrais dessas terras se faziam presentes nas cerimônias, sendo aceitos pelas nagôs, que passaram a adotar espaços para adoração dessas entidades do lado de fora de suas casas. Ao longo do tempo as entidades indígenas passaram a ser acolhidas dentro das casas de culto, dando origem ao jarê que ainda se pratica na Chapada Diamantina15. De acordo com Gabriel Banaggia, tanto a cosmologia como a ritualística do jarê sofreram mudanças a partir dessa influência afro-indígena, o que está na base das particularidades dessa religião, seja em sua música e dança em ritmos acelerados, nas cantigas em língua vernácula puxadas pelas entidades ou nos momentos de práticas de cura.
A cura é um dos momentos rituais mais importantes no jarê. A capacidade de tratar pessoas dos mais diversos males está ligada ao dom que o pai de santo, conhecido como curador, tem de interagir com pessoas e espíritos conseguindo identificar e curar problemas que escapam ao controle dos humanos. São os caboclos que exigem do curador que este cumpra o seu destino e lhe conferem os poderes de cura após um longo e penoso processo de limpeza do seu corpo e assentamento de seus guias16. Além disso, o trabalho do curador prescinde de um reconhecimento da comunidade quanto aos seus poderes.
O arriscado trabalho de busca por diamantes provavelmente favoreceu o estabelecimento de conexões entre o garimpo e o jarê. Além os laços de fraternidade que a religião forjava entre africanos escravizados e libertos, a participação nos rituais de jarê poderia servir como medida de proteção contra acidentes e mesmo para livrar da morte, acontecimentos recorrentes nos trabalhos nas serras da Chapada Diamantina. Além disso, o diamante encontrado e bem escondido dos senhores donos dos garimpos era estratégico para a compra de alforrias. Os curadores de jarê, através de consultas às entidades, poderiam indicar ao garimpeiro algum caminho para encontrar a desejada pedra, o que em geral implicava na determinação de obrigações rituais para “desinfusar” o garimpeiro e conduzi-lo ao bambúrrio, isto é, à descoberta do diamante, e esse à sua fortuna.
Assim, com o passar do tempo, o garimpo e o garimpeiro desenvolvem uma relação de identidade com o jarê. De acordo com Ronaldo Senna, ao passo que a cosmologia católica não oferecia resposta imediata às inquietações do garimpeiro, o jarê oferece um universo místico que vem ao seu socorro17. As explicações sobre a sorte ou dificuldades da vida no garimpo que pertencem a cosmologia do jarê, e são transmitidas através dos curadores, atravessaram as décadas e seguiram fazendo parte da rotina dos garimpeiros até gerações mais recentes. A crença na união espiritual entre os diamantes e as estrelas, de que para cada astro há um diamante enterrado; a ideia de que o diamante tem um dono escolhido pelo destino; se orientar pelo chamamento que o diamante faz ao seu dono através de sinais de som e de luz; a crença de que a pedra tem vida própria, se escondendo de quem não o merece e se revelando ao seu dono. Esses exemplos demonstram como o jarê penetrou na vida cotidiana dos moradores da Chapada Diamantina, e mais particularmente da cidade de Lençóis.
Outra forma de perceber essa influência da religião na sociedade está no reconhecimento popular sobre o poder dos curadores de jarê. A persistência da importância do curador com o passar do tempo pode ser verificada na constante demanda por suas capacidades milagrosas, sendo este encarado pelo povo como alguém sempre presente e disposto a ajudar os necessitados e que realiza seu trabalho sem exigir algum retorno em dinheiro. Por sua especialização e conhecimento de medicina incumbida de poderes mágicos, o curador ocupa um papel de autoridade18.
A história do jarê só pode ser pensada a partir da história do desenvolvimento das Lavras Diamantinas e suas comunidades. Não seria exagero dizer que o inverso também é verdadeiro. Os saberes e cosmovisões do jarê ajudaram a criar experiências de convivência baseadas no espírito coletivo, na solidariedade comunitária e na reverência à ancestralidade que unia escravizados e libertos, e oferecia meios para resistir ao sofrimento a que estavam submetidos. Com o declínio do garimpo já no fim do século XIX, as populações das cidades e povoados da região, majoritariamente negras, ficaram sujeitas a um isolamento que trouxe grandes dificuldades e privações para as pessoas de um modo geral. É provável que tais condições tenham gerado uma maior identificação com o jarê, seus ritos, com o culto às suas entidades e valorização das suas visões de mundo. Apesar da redução do número de casas de jarê nos últimos anos, é raro encontrar algum nativo ou nativa em Lençóis, cidade que congrega o maior número de terreiros, que não tenha tido algum com contato ou relação mais próxima com a religião19. O jarê é parte fundamental do imaginário coletivo que forma a identidade do povo da Chapada Diamantina.
1 KLEIN, H. S. Demografia da escravidão. In: SCHWARCZ, L. M.; GOMES, F. DOS S. Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. [s.l.] Editora Companhia das Letras, 2018.
2 SLENES, R. W. Africanos centrais. In: SCHWARCZ, L. M.; GOMES, F. DOS S. Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. [s.l.] Editora Companhia das Letras, 2018.
3 PARÉS, L. N. Africanos ocidentais. In: SCHWARCZ, L. M.; GOMES, F. DOS S. Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. [s.l.] Editora Companhia das Letras, 2018.
4 FLORENTINO, M.; RIBEIRO, A. V.; SILVA, D. D. DA. Aspectos comparativos do tráfico de africanos para o Brasil (séculos XVIII e XIX). Afro-Ásia, v. 0, n. 31, 27 jan. 2004.
5 PARÉS, L. N. Africanos ocidentais, 2018.
6 TOLEDO, C. DE A. A região da Lavras Baianas. text—[s.l.] Universidade de São Paulo, 28 mar. 2008.
7 BANDEIRA, R. L. 1995. Chapada Diamantina: história, riquezas e encantos. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia.
8 PARÉS, L. N. Religiosidades. In: SCHWARCZ, L. M.; GOMES, F. DOS S. Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. [s.l.] Editora Companhia das Letras, 2018.
9 BANAGGIA, G. As forças do jarê, religião de matriz africana da Chapada Diamantina. Rio de Janeiro: Garamond, 2015. p. 107-109
10 PARÉS, L. N. “Religiosidades”, 2018.
11 ALVES, P. C.; RABELO, M. C. jarê: Religião e Terapia no Candomblé de Caboclo. In: Anais do Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura. Salvador: Faculdade de Comunicação/UFBA, 2009.
12 SENNA, R. S. jarê: Uma Face do Candomblé. Feira de Santana: UEFS, 1998.
13 PARÉS, L. N. Africanos ocidentais., 2018
14 SLENES, R. W. Africanos centrais., 2018
15 BANAGGIA, G. Conexões afroindígenas no jarê da Chapada Diamantina. Revista de Antropologia da UFSCar. 9 (2), jul./dez. 2017:123-133. 2017.
16 ALVES, P. C.; RABELO, M. C. jarê: Religião e Terapia no Candomblé de Caboclo
17 SENNA, R.; AGUIAR, I. jarê: instalação africana na Chapada Diamantina. Afro-Ásia, v. 0, n. 13, 19 jan. 1980.
18 SENNA, R.; AGUIAR, I. jarê: instalação africana na Chapada Diamantina., 1980. p. 81
19 BANAGGIA, G. As forças do jarê, religião de matriz africana da Chapada Diamantina. 2015, p. 140.