Registro sonoro de Pedro de Laura
O curador Pedro de Laura foi o mais importante pai de santo de jarê das últimas décadas e figura notória da cidade de Lençóis, cuja fama e influência se estendeu por todos os cantos da Chapada Diamantina e até mesmo a outras partes do Brasil. A biografia de Pedro de Laura abaixo foi extraída e editada da tese “As forças do jarê: movimento e criatividade na religião de matriz africana da Chapada Diamantina” do antropólogo Gabriel Banaggia. As fotografias são de Açony Santos.
As histórias da vida de Pedro de Laura aqui registradas foram contadas, de diversas formas, por muitas das pessoas que lhe foram mais próximas em vida, narradas tanto de maneira espontânea como fazendo parte das conversas filmadas que realizei a pedido de Sandoval. Nascido na Vila de Santo Inácio, distrito do município de Gentio do Ouro, no extremo oeste da Chapada Diamantina, em 16 de abril de 1928, Pedro Florêncio Bastos desde pequeno era conhecido como Pedro “de Laura”, por ser este o nome de sua mãe, que o criou sozinha depois de terem se mudado para Lençóis.
Alguns de seus filhos de santo disseram que desde muito novo Pedro já exibia sinais de que nascera com um dom especial que o qualificava sobremaneira para se tornar um curador, uma capacidade pessoal que além de tudo foi ampliada não só pelo passar do tempo como pela trajetória que acabou trilhando. Longe de configurar uma opção pessoal, contudo, afirma-se que Pedro, mesmo reconhecendo seu potencial, jamais desejou se tornar um pai de santo. Poucos sabem como se deu efetivamente sua iniciação – se é que ela se fez –, sendo por vezes mencionado o nome de uma possível mãe de santo, Maria dos Mabaços, do povoado de Santa Luzia das Gamelas, no município de Andaraí, para a qual Pedro poderia ter sido levado para ser curado de uma enfermidade quando ainda criança.
O que se sabe é que a iniciação e formação de Pedro aconteceu com Manezinho Bumba, líder e fundador da atual Vila do Remanso, comunidade de remanescentes de quilombolas localizada em Lençóis. Manezinho Bumba havia sido iniciado por Zé Rodrigues, curador de Lençóis considerado o maior mestre do jarê que já existiu na Chapada Diamantina. Após a morte de Manezinho Bumba e cumprido o período de luto, a viúva de Manezinho Bumba passou o comando da casa para Pedro de Laura, que sempre se destacara enquanto um de seus frequentadores. Ainda muito jovem, Pedro fez seus primeiros filhos de santo no Remanso.
Ao mesmo tempo aos trabalhos que realizava no Remanso, Pedro de Laura fazia consultas em sua residência na cidade de Lençóis, além de sessões que alguns dos seus filhos de santo caracterizavam como de “mesa branca”. Nesse tempo, Pedro continuava a exercer o ofício de pedreiro que havia aprendido do mestre Miguel Ângelo Guerreiro, vindo com o tempo a se tornar mestre-de-obras e, por sua grande destreza, o profissional mais recomendado para realização de trabalhos que exigissem acabamentos delicados.
Após o fechamento do terreiro do Remanso e já tendo feito muitos filho e filhas de santo, Pedro de Laura compra o terreno próximo ao Rio Capivara, no qual hoje se encontra sua casa, o Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra no início dos anos 1950. Praticamente todos os líderes das casas de culto hoje em funcionamento em Lençóis foram iniciados na Capivara. Seus filhos de santo contam que Pedro de Laura tinha uma voz aguda, com a qual puxava as cantigas na condução dos jarês, e que sobressaía ainda mais quando dava alguma gargalhada. Mais ainda do que sua voz, os iniciados da Capivara se lembram da grande aptidão que Pedro exibia para a dança, especialmente quando manifestava uma de suas entidades femininas, provocando a inveja das filhas de santo e a admiração dos Página Inicialns.
Apesar de não ter se casado, Pedro de Laura acabou por deixar um herdeiro material, ao adotar informalmente o filho biológico de uma de suas filhas de santo que não apresentava condições de sustentá-lo. Sandoval foi criado por Pedro, assim como por Dona Laura, que passou a considerar como avó, desde muito novo.
Seus filhos de santo sempre falam a respeito das proezas de que só o criador do Palácio de Ogum era capaz. Tais feitos iam muito além dos rituais terapêuticos que realizava como curador. Entre as façanhas espetaculares de que Pedro de Laura era capaz, seus amigos mencionam o modo como, manifestando sua Iansã, ele atravessava a fogueira do terreiro sem se queimar. No ritual, Iansã deixava cair sua coroa em meio às brasas, abaixava-se calmamente para pegá-la e colocá-la de novo na cabeça antes de sair do fogo, sem que um fio de cabelo sequer de Pedro de Laura saísse chamuscado. Comentam também como Pedro era capaz de prender a respiração por um tempo inacreditável, bem como, ao realizar matanças submersas, concentrar o sangue do animal sacrificado numa cuia e erguê-la para a superfície sem que seu conteúdo se misturasse com as águas do rio.
Todos os filhos de santo reconheciam que Pedro de Laura era não apenas um curador de capacidade ímpar como uma pessoa absolutamente intempestiva, podendo ser tão atemorizante quanto obsequioso. Exigia dos frequentadores de sua casa obediência obstinada, sob risco de atraírem para si consequências sinistras, em geral em seus próprios corpos, de inchaços a doenças, que só passavam quando o agravo era desculpado. Um filho de santo seu conta certa que figuras de grande força e magnetismo pessoais, como era o caso de Pedro de Laura, atraíam em torno de si diversos simpatizantes, muitos deles visando por meio dessa proximidade obterem defesa contra adversidades, fossem de origem mística, fossem temporais.
Uma das tradições que continua a ser mantida no Palácio de Ogum é a realização da fogueira de Odé, que acontece em dezembro no dia em que se comemora a festa para Iansã. Os membros da casa de culto derrubam uma árvore jovem, alta e preferencialmente de tronco fino, numa área externa mas próxima ao terreno da casa de culto, e amarram em seus galhos diversos presentes, incluindo brinquedos, perfumes, sabonetes, frutas, biscoitos, balas, chocolates e outros doces. Depois, voltam a erguê-la, fincando-a no chão e amparando-a com pedaços de madeira lenhosa que à noite serão conflagrados para dar origem à fogueira. Os frequentadores da casa aguardam ansiosos que o tronco da árvore seja consumido para que ela caia e tenha início uma corrida desenfreada para se obter o maior número de presentes possível, da qual crianças e jovens participam com grande entusiasmo. A direção e o sentido, em relação ao Palácio, que a árvore assume ao tombar encerram em si presságios para a existência futura da casa: cair em sentido oposto ao terreno é indicativo de que o ano vindouro trará acontecimentos favoráveis à Capivara e aos seus; cair voltada para a construção é sinal de que haverá tribulações e adversidades no caminho da catedral do jarê. No final do ano de 1997, a árvore erguida para a fogueira de Odé tombou apontando exatamente a entrada do terreiro, precisamente aos pés da cadeira na qual estava sentado Pedro de Laura. Pedro não viveria para ver a fogueira de Odé seguinte, algo de que ele próprio tinha certeza, como os filhos de santo da Capivara foram se dando conta.
Pressentindo a chegada de sua morte, Pedro de Laura removeu grande parte dos objetos assentados em seu peji e os despachou no Poção do Capivara, tendo ocultado ainda outros para que não pudessem ser utilizados por pessoas que não possuíssem a capacidade necessária. No fim da vida, Pedro se encontrava acometido por graves problemas de coluna que o impediam de se movimentar como outrora, e quando alguma de suas entidades incorporava tinha de dançar de maneira mais cuidadosa, mas ainda muito bela, com auxílio dos filhos de santo. Pedro foi tratado em cidades da própria Chapada, recusando-se a ir para Salvador mesmo diante da insistência de todos que lhe eram próximos. Apesar de não faltarem voluntários para a tarefa, como disseram, foi o próprio Pedro de Laura que não aceitou ser transportado para muito longe da região na qual nascera, crescera e se criara; na qual preferia também morrer. Seu estado de saúde se agravou em definitivo ao lutar contra um câncer que terminaria por vencê-lo.
Alguns dias antes de seu falecimento, mandou reunir as pessoas de quem era mais chegado para transmitir algumas últimas mensagens, contendo a mensagem de Iansã. Ainda que estivesse mais próximo de determinadas pessoas em seus últimos anos de vida, chegando mesmo a treinar de forma mais direta alguns curadores em potencial, Pedro não apontou uma pessoa em específico para assumir a condução do Palácio de Ogum, ponto que, por diferentes motivos, todos os presentes naquele momento frisam ter ficado claro. Aos ali reunidos ele pediu, de toda forma, para que não deixassem sua casa cair após sua morte. E é isso que os filhos da Capivara têm procurado fazer até então.
A morte de Pedro de Laura esteve longe de significar o fim de sua presença nas vidas daqueles de quem era próximo, e o curador continuava a habitar não somente suas lembranças como seus sonhos. Vários dos filhos de santo de Pedro de Laura já sonharam em alguma ocasião com o curador após seu falecimento, algo que passou a ocorrer com menos frequência, disseram, com aqueles que haviam buscado para si um novo pai-de-santo, especificamente após terem realizado o ritual já mencionado de tirar a mão do morto de suas cabeças. Mais de uma filha-de-santo contou como, antes de se iniciar em outro terreiro, teve um último sonho no qual Pedro se despedia dela e fornecia um sinal que era interpretado como indicação e aprovação a respeito da nova casa à qual ela deveria se conectar.
Enquanto a matéria apodrece e tem seu fim definitivo, as entidades ligadas a uma pessoa podem continuar a existir de modos distintos e em locais específicos. Se só os mais antigos e corajosos entre os adeptos da Capivara escolhiam não realizar iniciações em outros terreiros, tanto estes como os que se sujeitavam a novos rituais mantinham em comum o fato de permanecerem – se não exatamente filhos de santo de Pedro de Laura – conectados ao Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra, especialmente por meio das duas entidades que lhe emprestavam nome.